Imagem capa - As Ansiedades das Nações  por Érico Hiller

As Ansiedades das Nações

Páginas importantes da história estão sendo escritas nesta primeira década do século XXI. Foi o que percebi enquanto assistia televisão deitado numa cama de um minúsculo quarto de hotel, em Moscou, na Rússia.  Milhares de imagens tomaram de assalto a minha paz, forçando-me a pensar sobre tudo o que acontecia no mundo, num exercício quase auto-destrutivo de tentar botar ordem nas coisas e encontrar lógica no caos. Quando mudei de canal, o noticiário falava de dois novos países de nome estranho, a Ossétia do Sul e a Abkházia, recém nascidos num intervalo não maior do que 15 dias entre o início de sua guerra separatista e a legitimação da independência.

A milhares de quilômetros dali, no meu país, anunciava-se a descoberta de petróleo na camada oceânica do pré-sal, abrindo possibilidades de um inusitado salto de desenvolvimento econômico, tratado no Brasil como uma espécie de passaporte para o futuro. Ao mesmo tempo, um experimento científico de proporções apocalípticas fazia funcionar o super-acelerador de partículas na Suíça, aumentando a sede dos cientistas por respostas sobre a origem do universo. Como cenário de uma catástrofe anunciada, o mundo começava a enfrentar a maior crise financeira desde a quebra da bolsa de Nova York em 1929,  por causa do calote aplicado por milhares de norte-americanos a alguns bancos que financiaram imóveis a juros extorsivos. Os desdobramentos de fatos de tamanho impacto nos levam a andar no escuro. Todo esse complexo fluxo de acontecimentos, ás vezes indecifrável, quase sempre intrigante, parece desviar o nosso olhar para longe do maior paradoxo da atualidade: ao mesmo tempo em que nunca se produziu tanta riqueza, conhecimento e troca de culturas, milhões de pessoas persistem amargando na miséria. A crise mundial de alimentos, por exemplo, parece sem solução se projetada no horizonte de 2050.  O ar nunca esteve tão sujo e a água, tão escassa. A queima de combustíveis fósseis chegou ao limite do suportável para um planeta em permanente processo de aquecimento, de tal modo que buscar novas alternativas energéticas limpas tornou-se a cruzada santa mais importante desta primeira década de novo milênio.


Tudo isso me faz crer que algo crucial está se passando diante de nossos olhos. Mais do que isso, que devemos estar atentos ao presente para preparar o terreno do futuro. A meu ver, as gigantescas diferenças sociais entre pessoas, geradas por um modelo de desenvolvimento econômico insustentável, estão revelando o lado B das grandes cidades, justamente aquelas  que deveriam ser os novos luminares da economia global. Para um certo conjunto de nações, esse problema já atingiu escala preocupante. Nelas, no entanto, em meio ao caos e ao inponderável, talvez possamos encontrar respostas para muitas das mais sentidas angústias da humanidade.  São nações vivas, pulsantes, que passaram a se desenvolver e a se industrializar rapidamente. E estão mudando o eixo da economia global, ainda que obrigadas a conviver, muro a muro,  com a riqueza ainda nova e a pobreza antiga e teimosa. Antes pertencentes ao chamado terceiro mundo, agora desfrutam do status de nova classe média do planeta. Liderados por China, Índia, Rússia e Brasil,  compõem o bloco dos chamados Emergentes.


Em geral, os sinais do crescimento econômico são comuns entre os emergentes: onipresença de imensas construções, multinacionais abrindo filiais, condomínios de luxo sendo inaugurados, cidades nascendo no meio do nada, ofertas de emprego com altíssimas qualificações, grandes marcas ostentando letreiros nos mais sofisticados shopping centers. Apesar da condição da emergência, no entanto, ainda representam luxo para poucos. E, em vez de diminuir, as diferenças entre ricos e pobres se agravam. Em algum momento de 2008, mais pessoas estarão morando em cidades do que no campo. A migração promove uma urbanização galopante e incontrolável. Mas o mesmo progresso que atrai os trabalhadores rurais para os centros urbanos  acaba resultando nas condições que os apartam em bolsões de miséria. Carentes de praticamente tudo e com infra-estruturas geralmente esgotadas, as grandes cidades que fotografei suscitam análises que fazem nossa opinião oscilar entre a admiração e o horror. Em Mumbai, vi lojas de carros de altíssimo luxo dividirem a rua com favelas enormes. Na cidade do Rio de Janeiro, flagrei uma moradora de rua grávida se banhando no esgoto a menos de dez metros de um shopping center para ricos. E o que dizer das belas e modernas paisagens de Xangai e Hong Kong? Senão que ajudam a ofuscar uma cruel realidade: segundo estimativas do relatório Estado das Cidades do Mundo, de 2006, da UN-HABITAT, quase um terço da população mundial das grandes cidades estão vivendo em favelas. São indivíduos cujo trabalho ajuda a fazer funcionar a cidade, mas que moram à parte dela, em condições precárias e desumanas. Difícil saber até que ponto, com o crescimento econômico de seus países, eles estão - como se apregoa -  reconquistando sua dignidade e cidadania. A minha impressão é de que esse processo ocorre em ritmo muito inferior ao que sugerem as infladas taxas de crescimento de suas nações. A despeito disso, há algo de vivo, vibrante e febril acontecendo nos Emergentes que, sem dúvida, poderá determinar a qualidade de vida das próximas gerações, do outro bilhão de seres humanos a caminho.


Viver em um país emergente pressupõe aprender a conviver com o progresso e o retrocesso como duas faces de uma mesma moeda. E isso, a rigor, é algo familiar para mim. Afinal, moro há vinte anos em São Paulo,  cidade emblemática de um processo de emergência. Nas entrelinhas do meu cotidiano, sempre senti uma espécie de tensão permanente no ar, reforçando a impressão de que as pessoas compartilham mesmo no silêncio o fato de viverem em mudança, de trabalharem por uma promessa de que algo melhor está sempre prestes a acontecer.

 Mas quando? Desde jovem, ouço os brasileiros desejarem um futuro promissor. Todos querem e merecem melhorar de vida. No entanto, como construir uma sociedade estruturada igual à de um país rico sem transformar os desafios ambientais e de infra-estrutura das grandes cidades num nó difícil de desatar? De quantos planetas precisaremos dispor se todos os emergentes desejarem ser o que os Estados Unidos são hoje? Sob a influência dos números relacionados ao fantástico crescimento dessas nações, passei a acreditar que seria possível fotografar as tensões sociais e os dilemas ambientais inerentes à condição de emergência. Brasileiro que sou, portanto um autêntico emergente assolado pelas mesmas inquietações, enfiei-me numa jornada em busca dos meus pares. Como está sendo viver em um país emergente? Como é conviver com os contrastes em um centro urbano super-congestionado? Como o meio ambiente está sendo afetado pelo crescimento econômico? Tentando responder a essas perguntas, parti para aquilo que muitos classificam como “a aventura mais ousada de uma vida”, sem saber ao certo como seria provocado a descobrir, na pele, e de modo fascinante, o quanto a emergência impacta a vida das pessoas. E também como ela pode incluir e excluir cegamente.


Depois de fazer uma pesquisa com minha equipe, passei o ano de 2008 na estrada, fotografando de cidade em cidade. Minha idéia era enfrentar as dificuldades que as pessoas enfrentam, ver em que condições trabalham, se locomovem ou moram e sentir nos meus pulmões o mesmo ar poluído que respiram. Na prática, transformei-me em personagem do meu próprio documentário. Visitei 20 cidades em seis países: Brasil, Argentina, China, Índia, México e Rússia. Pisei em todos os extremos de uma sociedade, no barro e no asfalto. Conheci diversas empresas, usinas de energia, locais de extrema pobreza, organizações da sociedade civil, centros de comércio de luxo, pontos de encontros religiosos, órgãos de governos, universidades e escolas. Entrei em todas as casas para as quais fui convidado. Utilizei todos os meios de transporte de que dispunha. Procurei colocar a minha fotografia a serviço da tarefa de tentar compreender as ansiedades dessas pessoas, ou mais ainda, as ansiedades impregnadas no imaginário coletivo das nações onde vivem. Para mim, essa foi uma gratificante experiência que jamais imaginei viver. Andando pelas ruas com a minha câmera, tentava, de algum modo, contaminar as fotos com um certo estado de espírito que extraía do rico contato com as pessoas. Curioso que sou, levei ao extremo das possibilidades o meu jeito de viver. A fotografia é minha grande paixão, sobretudo porque ela me ensina, a todo momento, a desbravar lugares e a conhecer pessoas de cuja existência nunca teria me dado conta não fosse o meu ímpeto de ir, de estar lá. Gente e lugar são, para mim, sujeitos e não objetos. Através da linguagem fotográfica medito, busco minhas respostas e procuro paz. Deparo-me com minhas limitações. E também sacio a minha fome por ousar. A fotografia me leva aos caminhos da tentativa, e melhor até, aos da superação. A meu ver, ela é um dos mais profundos exercícios de auto-conhecimento físico e espiritual. Mais do que isso, representa uma saga íntima de reconhecimento e interpretação do estranho mundo que nos cerca.


Brasil, Argentina, China, Índia, México e Rússia. Juntos, são responsáveis por 30% do PIB do planeta. Neles, moram 3 bilhões de almas. É certo que muitas dessas pessoas podem estar sendo testemunhas dos eventos que registro nas fotografias. Encerrei este meu trabalho convicto de que a rota escolhida de crescimento e competitividade não têm mais volta. E os seus reflexos estão fortemente presentes nos menores detalhes das vidas de inúmeros cidadãos. A economia de mercado sintetiza a nova ordem mundial. É ao mesmo tempo a resposta para os problemas e o problema em si. Crescer é o que todos os países desejam. Mas ninguém cresce impunemente, nem de modo linear e sem custos marginais e subliminares para as pessoas e o meio ambiente. Vivemos em tempos de aquecimento global, crise de alimentos e sede por petróleo cada dia mais escasso e caro. O nosso estilo de vida ameaça exaurir os recursos do planeta de modo irreversível. Nesse sentido, todos os emergentes que fotografei seguem a mesma trilha de desenvolvimento insustentável adotada pelas nações ricas, só que num ritmo mais acelerado.


A enorme demanda energética, a superlotação das megacidades e o esgotamento dos recursos naturais passaram a ser o desafio supremo para os governantes e um inferno particular para seus cidadãos. Estamos pagando um alto preço pela emergência. Os mesmos dilemas urbanos de trânsito, poluição, criminalidade, escassez de água e de energia elétrica que vivi e vivo em São Paulo estão presentes em centros urbanos como, por exemplo, Deli, Calcutá, Xangai, Chongqing, Moscou ou Buenos Aires. Interessante notar que tais desafios também se fazem sentir em nações mais industrializadas. Nos emergentes, no entanto, eles parecem especialmente mais alarmantes, talvez porque seus impactos prejudicam a qualidade de vida de bilhões de pessoas, talvez porque, apesar da nova riqueza, lhes faltem os recursos necessários para encarar o problema.
O maior desafio da condição de emergência é, em minha opinião, o da pobreza e da desigualdade social. Reconheço o drama ambiental e os seus efeitos particularmente mais duros sobre as pessoas de baixa renda.  Mas preocupa-me sobretudo que os cidadãos mais pobres, justamente os que não param de migrar para as cidades em busca de oportunidades, possam também se beneficiar  das vantagens do crescimento econômico. Uma das lições aprendidas durante o processo de investigação fotográfica que originou este livro é que, qualquer que seja o país, independentemente da cultura e dos valores, um pai e uma mãe sempre sonham em proporcionar, com o seu trabalho, um futuro melhor para os filhos. Eis aí uma aspiração universal e sem fronteiras. Uma aspiração sustentável. Arriscaria dizer que este livro é um minúsculo fragmento do que pode estar em curso diante das portas de nossas casas. Algo que só precisa ser visto e percebido. Como toda obra autoral, as imagens aqui presentes registram as minhas impressões. Cabe-me apenas dividi-las com o leitor para que ele também forme as suas próprias impressões. Não tenho dúvidas de que estamos vivendo um tempo de grandes impactos para a existência humana. Para além da reflexão filosófica, no entanto, as pessoas vivem como sempre viveram. Elas compram nas lojas, se encontram nas praças, viajam com as famílias, amam os seus amores, partilham a mesa com amigos, saem em busca de diversão, lêem no metrô, participam de cultos religiosos e param para uma bebida no final do dia. Há beleza fluida no jeito com que as pessoas vivem a sua vida, apesar das dificuldades e das incertezas decorrentes de um modelo de desenvolvimento excludente, à vezes injusto e quase sempre perverso.


Sempre que inicio um novo trabalho, procuro nunca ter tanta certeza do que fazer até para manter o espírito e o olhar libertos de condicionamentos. No entanto, para preservar a qualidade do resultado, desta vez decidi o que não queria fazer. Pareceu-me saudável evitar o conforto das imagens lugares comuns que ressaltam apenas os contrastes já batidos dos grandes centros urbanos. Moveu-me, na verdade, um impulso incontrolável de retratar a vida de pessoas que podem ainda estar tentando encontrar um espaço particular nessa nova ordem de transformações globais. Queria, de fato, registrar os extremos, mostrando o que há de fascinante e de frustrante no cotidiano dos cidadãos emergentes. Por dois motivos. Fazer com que o leitor enxergasse o que tem de comum com eles. E também fazer com enxergasse para além deles, imaginando a vida que vivem, os sonhos que sonham, os amores que amam e as dúvidas sobre o futuro que lhes tiram o sono.


Experimentamos uma era de transição. Que futuro o futuro nos reserva ante a recente constatação científica de que o homem é a única espécie que pode destruir o ambiente em que vive? O desespero por querer acreditar nos faz sonhar, tornando-nos mais otimistas. Mas a esperança pode ser torturante quando a vemos apoiada em alicerces que se mostram cada dia mais frágeis, ao invés de se fortalecerem. Eis a razão por que “nós” brasileiros, argentinos, chineses, indianos, mexicanos e russos vivemos tão ansiosos. Ainda no tempo de nossas vidas, neste século XXI, a humanidade terá de construir respostas para perguntas difíceis. E nesse esforço, talvez sejamos confrontados, sob o risco de alguma culpa e muita incerteza, com as decisões insustentáveis que as gerações anteriores tomaram no passado. Talvez percamos um pouco da paz que nos protege do sentimento desconfortável de ter feito menos do que deveríamos. Não vivemos em um mundo ideal. Mas fazemos parte dele, com todas as suas dificuldades, complexidades e belezas. Penso que seja nossa responsabilidade agir como fiscais das contradições geradas pela condição de emergência, cobrar as empresas e os governos de seu papel social e ambiental, para que o desenvolvimento beneficie a todos e não a poucos, respeitando os limites do planeta de repor os recursos que consumimos para viver bem.


A partir deste trabalho, não conseguirei mais me desapegar do futuro, embora tenha mais dúvidas do que certezas de que estejamos preparados para projetá-lo. Por isso, confesso o meu desejo de que este livro chegue ao maior número possível de governantes, empresários, pensadores e tomadores de decisão. Assim, as imagens aqui contidas poderão assumir um propósito mais amplo - servir como fonte de idéias, informação e inspiração para que eles possam trabalhar nas soluções dos dilemas que enfrentaremos nesse século. Como fotógrafo, esta foi a melhor contribuição que eu poderia oferecer. Espero que seja uma leitura enriquecedora e agradável para todos.